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Um “guardado” é um objecto que sobreviveu ao tempo com intenção. É um daqueles objectos que decidimos poder vir a fazer parte de nós, do que somos hoje, na antecipação de um futuro em que precisamos de ser recordados da sua importância. Guardamos um “guardado” porque o queremos fixar no tempo, neste tempo… para que não se perca nunca.

Guardado (adjectivo): Protegido ou defendido contra algo ou alguém; Que se conserva para não se deteriorar; Posto de parte; Oculto, escondido.
Guardados (nome masculino plural): Objectos que se guardam em caixas ou outros compartimentos.

Um “guardado” pode ser uma fotografia de um acontecimento mais ou menos especial, mais ou menos banal, uma fotografia nossa ou de outrem. De um agente activo na nossa história ou de um desconhecido, ou de um grupo de desconhecidos, ou de um grupo de desconhecidos à volta de um conhecido. Pode ser aquela tesoura da poda que nunca falhou, aquele colar que nos definia, aquele apontamento de coisa importante ou daquela vez em que nos saíu um verso ou uma estrofe. Pode ser um recorte escurecido de uma revista ou jornal entretanto desaparecidos. Pode ser um equipamento tecnológico de ponta, entretanto obsoleto. Pode ser grande, não tem de ser pequeno (haja espaço para guardar o “guardado”). Pode ser uma escada de azeitona na qual os nossos pais e avós subiram e desceram milhares de vezes. Pode, até, ser um “guardado” de gerações… um que nunca experimentámos e que não experimentaremos porque não queremos correr o risco.

Com estes “guardados” podemos contar uma história… a dele, do seu dono ou dona. Ou outra história qualquer, aquela que nos vier à cabeça quando o vemos, tocamos, cheiramos… quando imaginamos, condicionados, como sempre somos, pelo que sabemos ou ignoramos. Estes são os “guardados” sobre os quais queremos contar histórias.

Filipe Faria

A 'guardado’ is an object that has survived over time as a result of intention. It is one of those objects that we decide can become part of us, of who we are today, in anticipation of a future in which we’ll need reminding of its importance. We keep it because we want to preserve it in time, in this time... so that it will never be lost.

Guardado (adjective): protected or defended against something or someone; that is collected and preserved so as not to become damaged; kept away; hidden, concealed.
Guardados (noun, plural): objects that are stored up in boxes or other containers.

A ‘guardado’ can be a photograph of an event, whether special or banal, a photograph of oneself or of someone else. Of an important figure in our lives or of a stranger, or of a group of strangers, or of a group of strangers with someone we know. It can be that pair of pruning shears that never once failed, that necklace that defined us, that note about something important or that time we came up with a verse or a stanza. It can be a browned clipping from a magazine or newspaper that has long since disappeared. It can be what was once a piece of cutting-edge technology, now obsolete. It can be big; it doesn't have to be small (there's plenty of space to keep the ‘guardado’). It can be an olive-picking ladder that our parents and grandparents climbed up and down thousands of times. It can even be a ‘guardado’ from generations past... one we've never used and won't use because we don't want to take the risk.

With these ‘guardados’ we can tell a story... their story or the story of their owners. Or any other story; the one that comes to mind when we see it, touch it, smell it… when we imagine it, conditioned, as always, by what we know or don't know. These are the ‘guardados’ we want to tell stories about.

[Guardado: treasured, preserved, guarded, protected, kept safe]

Filipe Faria

 
 

001

Filipe Faria
Guardados 001

ASADO 
POTE DE ÁGUA
CLAY WATER POT

Filipe Faria
Fotografia Photography 
Filme Film
Som Sound

Um projecto A project by 
Arte das Musas

Em parceria com In partnership with 
Município de Idanha-a-Nova 
\UNESCO Creative City of Music

Apoio Support
República Portuguesa - Cultura 
\Direção-Geral das Artes

Filmado e fotografado em Filmed and photographed in 
Zebreira (Idanha-a-Nova)

Agradecimentos Acknowledgments
Paulo Pinto
População da aldeia da Zebreira

Posfácio Afterword Paulo Longo

Edição Edition Arte das Musas
Colecção Collection Guardados
Parceria Partnership O Homem ONG
Design gráfico Graphic design Filipe Faria
Tradução Translation Kennistranslations

1ª Edição 1st edition Idanha-a-Nova 2023
Impressão Print Printer
ISBN 978-989-35083-2-9

© 2023 Filipe Faria, fotografias photos
© 2023 Arte das Musas

 

Pote de água (Asado)
Barro não vidrado, pintado.

As marcas de utilização são particularmente fortes no caso deste asado. O esforço em mantê-lo a uso é evidenciado pelos gatos e pelas camadas de tinta que ainda apresenta na parte de fora.

Local de fabrico: Olaria da Zebreira
Data de fabrico: anos 50
Local de utilização: Rosmaninhal
Período de utilização: até aos anos 80
Medidas: 38,5 (a) x 30 (d)- O/R.178
Capacidade: aprox. 15 l

Clay water pot (Asado)
Unglazed terracotta, painted.

The marks of use are particularly evident on this ‘asado’, while the efforts to maintain that use are demonstrated by the staples (gatos) and layers of paint still visible on the outside.

Place of manufacture: Olaria da Zebreira
Date of manufacture: 1950s
Place of use: Rosmaninhal
Period of use: until the 1980s
Dimensions: 38.5 (h) x 30 (Ø)- O/R.178
Capacity: approx. 15 l

in Oleiros de Idanha (catálogo catalogue), Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova, 1997

 

Posfácio
Paulo Longo

Até meados dos anos 60 do séc. XX, encontravam-se dois centros oleiros activos no concelho de Idanha-a-Nova: um, mais expressivo, na vila de Idanha, e o outro, na aldeia da Zebreira.
As razões que levaram ao seu desaparecimento não diferem muito do quadro que determinou o fim das actividades económicas de base tradicional no nosso país e no interior, em particular: população que migra em busca de uma vida melhor noutras paragens, a concorrência funcional, económica e social dos materiais modernos, a inadaptação à inevitável mudança… ditaram que pretérito fosse o tempo verbal comum para muita olaria popular, Idanha incluída. Mas, um ocaso não é, necessariamente, um fim. Ou pelo menos, um fim absoluto. Não enquanto for possível aceder à memória guardada das histórias que não se escreviam, resgatar para um futuro a haver.
Idanha conseguiu fazê-lo para esta história em particular. Sem a pretensão de ter guardado tudo, guardou-se muito, o suficiente para conhecer lugares, actores, processos e vidas – tantas vidas!-  simultaneamente tão perto e tão longe de nós, no tempo. De pessoas e de objectos. O inextricável de histórias de um mundo que só existe desta forma: guardado.
Asado é o nome dado ao pote onde se guardava a água de beber, em casa. Necessidade de um tempo sem água a sair da torneira – algo que, por aqui, durou até tarde no séc. XX – , é hoje uma opção de gosto, para aqueles que apreciam o paladar que o barro confere à água nele depositada.
Este foi feito na Zebreira, algures na década de 1950, e esteve a uso, na mesma família, até finais da de 1980, no Rosmaninhal.
As qualidades conferidas à água nele contida, frescura e sabor, foram as razões do empenho na sua manutenção ao longo dos anos, testemunhado pelas sucessivas reparações que apresenta: os velhos gatos (grampos de metal para consolidar fracturas e colagens) e, mais contemporâneo, as sucessivas camadas de tinta.
Um asado que faz jus ao sentido do nome que por aqui se lhe dá: não pelas asas, que não tem, mas por servir bem o seu propósito, em suma, jeitoso.   

Afterword
Paulo Longo

Until the mid-1960s, there were two active pottery centres in the municipality of Idanha -a-Nova: one, more significant, in the town of Idanha, and the other in the village of Zebreira.
The reasons behind their disappearance are not dissimilar to the factors that led to the end of traditional economic activities in Portugal, especially in the interior of the country: people migrating in search of a better life elsewhere, functional, economic and social competition from modern materials, failure to adapt to inevitable change... all of this meant that many popular artisanal centres became a thing of the past, and Idanha was no different. But although the sun may have set in that regard, it doesn't necessarily spell the end. At least not the definitive end. Not as long as it's still possible to access those precious, preserved memories of stories never written down, retrieving them for a future as yet unwritten.
Idanha has succeeded in doing so for this particular story. Without claiming to have saved everything, a lot has nevertheless been preserved; enough to discover places, people, processes and lives – so many lives! – so close and yet also so far away from us in time. People and objects. The inextricable stories of a world that only exists in this form: ‘guardado,’ preserved, safekept.
‘Asado’ is the name given to the pot where drinking water used to be kept in people's homes, a necessity at a time when there was no running water – a reality in Portugal until the late 20th century. Nowadays it's a personal choice for those who enjoy the flavour that the clay imparts on the water inside.
This one was made in Zebreira sometime in the 1950s and was used by the same family in Rosmaninhal until the late 1980s.
The coolness and flavour conferred on the water inside were the reasons behind the commitment to maintaining it over the years, as borne witness by its successive repairs: the old metal staples (gatos) and glue to fix cracks and, more recently, the successive coats of paint.
It’s an ‘asado’ that lives up to its name in these parts: not ‘asado’ in the Portuguese sense that it has handles, since it has none, but rather ‘asado’ in the other sense that it is both elegant and serves its purpose well.