Filipe Faria
Livro \Book
Exposição \Exhibition
Música \Music
Paisagem Sonora \Soundscape
Filme \Film
Fotografia \Photography
Um “guardado” é um objecto que sobreviveu ao tempo com intenção. É um daqueles objectos que decidimos poder vir a fazer parte de nós, do que somos hoje, na antecipação de um futuro em que precisamos de ser recordados da sua importância. Guardamos um “guardado” porque o queremos fixar no tempo, neste tempo… para que não se perca nunca.
Guardado (adjectivo): Protegido ou defendido contra algo ou alguém; Que se conserva para não se deteriorar; Posto de parte; Oculto, escondido.
Guardados (nome masculino plural): Objectos que se guardam em caixas ou outros compartimentos.
Um “guardado” pode ser uma fotografia de um acontecimento mais ou menos especial, mais ou menos banal, uma fotografia nossa ou de outrem. De um agente activo na nossa história ou de um desconhecido, ou de um grupo de desconhecidos, ou de um grupo de desconhecidos à volta de um conhecido. Pode ser aquela tesoura da poda que nunca falhou, aquele colar que nos definia, aquele apontamento de coisa importante ou daquela vez em que nos saiu um verso ou uma estrofe. Pode ser um recorte escurecido de uma revista ou jornal entretanto desaparecidos. Pode ser um equipamento tecnológico de ponta, entretanto obsoleto. Pode ser grande, não tem de ser pequeno (haja espaço para guardar o “guardado”). Pode ser uma escada de azeitona na qual os nossos pais e avós subiram e desceram milhares de vezes. Pode, até, ser um “guardado” de gerações… um que nunca experimentámos e que não experimentaremos porque não queremos correr o risco.
Com estes “guardados” podemos contar uma história… a dele, do seu dono ou dona. Ou outra história qualquer, aquela que nos vier à cabeça quando o vemos, tocamos, cheiramos… quando imaginamos, condicionados, como sempre somos, pelo que sabemos ou ignoramos. Estes são os “guardados” sobre os quais queremos contar histórias.
Filipe Faria
A 'guardado’ is an object that has survived over time as a result of intention. It is one of those objects that we decide can become part of us, of who we are today, in anticipation of a future in which we’ll need reminding of its importance. We keep it because we want to preserve it in time, in this time... so that it will never be lost.
Guardado (adjective): protected or defended against something or someone; that is collected and preserved so as not to become damaged; kept away; hidden, concealed.
Guardados (noun, plural): objects that are stored up in boxes or other containers.
A ‘guardado’ can be a photograph of an event, whether special or banal, a photograph of oneself or of someone else. Of an important figure in our lives or of a stranger, or of a group of strangers, or of a group of strangers with someone we know. It can be that pair of pruning shears that never once failed, that necklace that defined us, that note about something important or that time we came up with a verse or a stanza. It can be a browned clipping from a magazine or newspaper that has long since disappeared. It can be what was once a piece of cutting-edge technology, now obsolete. It can be big; it doesn't have to be small (there's plenty of space to keep the ‘guardado’). It can be an olive-picking ladder that our parents and grandparents climbed up and down thousands of times. It can even be a ‘guardado’ from generations past... one we've never used and won't use because we don't want to take the risk.
With these ‘guardados’ we can tell a story... their story or the story of their owners. Or any other story; the one that comes to mind when we see it, touch it, smell it… when we imagine it, conditioned, as always, by what we know or don't know. These are the ‘guardados’ we want to tell stories about.
[Guardado: treasured, preserved, guarded, protected, kept safe]
Filipe Faria
Exposição Exhibition
Inauguração \Opening
Centro Cultural Raiano (Idanha-a-Nova) Jul-Out 2025
18 Julho 2025 21h00
Conto do Vazio Tale of Emptiness
Filipe Faria
Excerto | Excerpt
“Este, como todos os objectos que não são inteiramente conscientes mas que, pela frequência do uso e pela proximidade com o corpo humano, vão adquirindo uma espécie de memória que não é bem memória e uma espécie de pensamento que não chega a ser pensamento, mas que em certas circunstâncias pode confundir-se com ele, este, dizia, foi construído por um homem que não sabia que estava a construir o vazio, mas apenas a entrelaçar vergas de castanho segundo a técnica que lhe ensinara o pai e que o pai aprendera com um homem de fora, vindo sabe-se lá de onde, talvez do lado de lá do rio ou de mais longe ainda, um desses homens que aparecem nas aldeias como se tivessem vindo do fundo da terra e desaparecem da mesma maneira, deixando atrás de si uma receita de pão, uma superstição e um gesto com as mãos que, quando repetido com a devida paciência, resulta num objecto capaz de conter outras coisas, como legumes, galinhas mortas, mantas dobradas ou mesmo, numa emergência que não chegou a ser relatada mas que aconteceu, um animal recém--nascido embrulhado em panos, não para ser salvo nem para ser escondido, mas porque havia pressa e mais ninguém tinha braços.” (…)
“This one, like all objects that are not entirely conscious, but through frequent use and closeness to the human body begin to acquire a kind of memory that is not quite memory, and a kind of thought that never quite becomes thought, yet which, in certain circumstances, can be mistaken for it, this one, as I was saying, was built by a man who did not know he was building emptiness, but was merely weaving chestnut wood ribbons according to the technique taught by his father and learnt by his father from a man from elsewhere, from who knows where, perhaps from across the river or from even farther, one of those men who appear in villages as if they had come from the depths of the earth and vanish in the same manner, leaving behind a recipe for bread, a superstition, and a gesture of the hands which, when repeated with due patience, results in an object capable of containing other things, like vegetables, dead hens, folded blankets or even, in an emergency that was never recorded but did happen, a newborn creature wrapped in cloth, not to be rescued or to be hidden, but simply because there was haste, and there were no more arms.” (…)
Posfácio
Paulo Longo
Não raras vezes, damos mais visibilidade ao contexto de produção de um objecto do que à(s) vida(s) que este ganha nas mãos de quem o utiliza no seu quotidiano. É compreensível: a classificação, por mais exaustiva, deixa de fora declinações do uso que obedecem a propósitos ou intervenções mais particulares que se identificam com a relação funcional que se estabelece entre objecto e utilizador. E é perfeitamente aceitável que, nesse domínio, se escapem detalhes cujo alcance é, tantas vezes, fortuito.
A história da cesta de Maria do Carmo Milheiro enquadra-se, precisamente, aí. Falecida em 1998, deixou o legado que tantas mulheres, mães e avós, deixaram por estes lados: as memórias de uma vida feita de trabalho árduo, de sacrifício, de saberes e sabores de referência, que perduram até hoje na família e na comunidade da aldeia onde sempre viveu, Oledo.
Esta cesta configura, de certa forma, um legado a posteriori, reflexo indirecto de um dos trabalhos em que era exímia, a sua horta. Mas não só. Guardada no local onde Maria do Carmo a deixou, a cesta viria a revelar uma história peculiar. Não se trata apenas de um objecto que chegou até nós com marcas de uso mas em bom estado – o que só por si, já seria notável, considerando a relativa fragilidade da matéria de que é feito. Trata-se, sobremaneira, do testemunho de um gesto outrora mais comum: o esforço posto em conservar a funcionalidade, recuperando danos sofridos e melhorando a capacidade do objecto em corresponder às necessidades do uso quotidiano num tempo que os recursos eram mais escassos. Resultado: a cesta de verga de castanho não é apenas uma cesta em verga de castanho.
Numa analogia forense, o que nos diz o corpo? Primeiro, os danos. Que marcas deixou o uso continuado, carregando pesos, sofrendo quedas. Em dado momento a asa quebrou-se pela base das vergas, junto ao bordo. Noutra ocasião o encanastrado do fundo partiu-se em vários pontos, deixando um buraco considerável. Porém, à primeira vista, a cesta parece intacta. Logro que apanhou desprevenidos quem a trouxe de volta à esfera do visível – o pó e a patine fizeram bem o seu trabalho.
A limpeza trouxe o reconhecimento de um extenso e bem executado trabalho de reconstrução que, mais do que refazer partes criou uma cesta mais funcional e robusta no seu todo. Como? Incorporando cuidadosamente elementos metálicos com uma qualidade de execução que os torna pouco perceptíveis a um olhar desatento: a alça integralmente substituída por uma tira de ferro reproduzindo a forma original, encaixando-se ao longo do corpo como de uma verga de castanho se tratasse; os encaixes quebrados bem rematados à cota do bordo; a folha de alumínio a cobrir mais do que a falha original, num reforço estrutural igualmente bem integrado.
A cesta escapou, assim, ao prosaico destino dos objectos quebrados. Ganhou uma segunda vida que perdurou enquanto perdurou a de quem lha deu. Num tempo em que sustentabilidade passou a jargão, eis um exemplo que nos chega de um outro tempo, de uma sociedade rural onde a necessidade e a respectiva satisfação obedeciam a um pragmatismo que não excluía um toque criativo.
Esta é a lição que nos deixou Maria do Carmo Milheiro, a somar às muitas que soube transmitir enquanto esteve entre nós. E, como ela, muitos outros deixaram testemunhos tão pertinentes como tocantes, ainda dispersos no espaço e no tempo. À espera, guardados.
Afterword
Paulo Longo
It is not often that we give more visibility to the context of an object’s production than to the life (or lives) it gains in the hands of those who use it in their daily lives. This is understandable: classification, however exhaustive, leaves out nuances of use that follow more particular purposes or interventions, shaped by the functional relationship established between the object and its user. And it is perfectly acceptable that, in this domain, details whose significance is often incidental may be overlooked.
The story of Maria do Carmo Milheiro’s basket fits precisely into this context. She passed away in 1998, leaving behind the legacy that so many women, mothers and grandmothers have left in these parts: the memories of a life shaped by hard work, sacrifice, and a repertoire of knowledge and taste, which still endures within the family and in the community of the village where she always lived — Oledo.
This basket, in a way, represents a legacy after the fact, an indirect reflection of one of the tasks in which she excelled: her garden. But not only. Kept in the place where Maria do Carmo had left it, the basket would reveal a peculiar story. It is not simply an object that reached us showing signs of use but still in good condition — which in itself would already be remarkable, given the relative fragility of the material from which it is made. It is, above all, the testimony of a gesture that was once more common: the effort to preserve functionality by repairing damage and improving the object’s ability to meet the demands of daily use in a time when resources were scarcer. The result: the chestnut wood ribbon basket is not merely that.
By way of forensic analogy: what does the body tell us? First, the damage. What marks did continuous use leave — carrying weights, suffering falls? At one point, the handle broke at the base of the ribbons, near the rim. On another occasion, the weaving at the bottom broke in several places, leaving a considerable hole. However, at first glance, the basket seemed intact — a deception that caught by surprise those who brought it back into the visible realm. The dust and patina had done their work well.
Cleaning revealed the extent of a careful and well-executed reconstruction that, more than merely replacing parts, created a basket that was more functional and robust as a whole. How? By carefully incorporating metallic elements with such craftsmanship that they became barely noticeable to an inattentive eye: the handle was entirely replaced by a strip of iron reproducing the original form, fitting along the body as if it were a chestnut wood ribbon; the broken joints were neatly finished at the rim; an aluminium sheet covered more than just the original flaw, providing structural reinforcement that was just as well integrated.
Thus, the basket escaped the mundane fate of broken objects. It gained a second life that lasted as long as the life of the person who had given it. In a time when sustainability has become a buzzword, here is an example that comes from another era, from a rural society in which necessity and its fulfilment obeyed a pragmatism that did not exclude a creative touch.
This is the lesson left by Maria do Carmo Milheiro, adding to the many she knew how to pass on while she was among us. And, like her, many others have left testimonies just as meaningful and moving, still scattered across space and time. Waiting, kept safe.
003
Filipe Faria
Guardados 003
CESTA
BASKET
Filipe Faria
Conto Tale
Fotografia Photography
Filme Film
Som Sound
Música Music
Conto Tale
Fotografia Photography
Filme Film
Som Sound
Filipe Faria
Posfácio Afterword
Paulo Longo
Um projecto A project by
Arte das Musas
Em parceria com In partnership with
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO Creative City of Music
Apoio Support
República Portuguesa - Cultura
\Direção-Geral das Artes
Agradecimentos Acknowledgments
Paulo Longo
Edição Edition Arte das Musas
Colecção Collection Guardados
Produção Production Rita Santos, Luís Sequeira
Parceria Partnership O Homem – Colectivo
Design gráfico Graphic design Filipe Faria
1ª Edição 1st edition Idanha-a-Nova 2025
Impressão Print Maiadouro
ISBN 978-989-36322-1-5
MU0146 © 2025 Filipe Faria, fotografias photos © 2025 Arte das Musas
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