Guardados 003 • O Vazio • Filipe Faria
Guardados 003 • O Vazio • Filipe Faria
Guardados 003 • O Vazio
2024
MU0146
LIVRO BOOK
Filipe Faria
Conto Tale
Fotografia Photography
Filme Film
Música Music
Paulo Longo
Posfácio Afterword
Um projecto A project by
Arte das Musas
Em parceria com In partnership with
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO Creative City of Music
Apoio Support
República Portuguesa - Cultura
\Direção-Geral das Artes
Agradecimentos Acknowledgments
Paulo Longo
Posfácio Afterword Paulo Longo
Edição Edition Arte das Musas
Colecção Collection Guardados
Parceria Partnership O Homem ONG
Design gráfico Graphic design Filipe Faria
1ª Edição 1st edition Idanha-a-Nova 2024
© 2024 Filipe Faria, fotografias photos
© 2024 Arte das Musas
A CESTA
THE BASQUET
Conto do Vazio
Tale of Emptiness
Filipe Faria
Excerto | Excerpt
“Este, como todos os objectos que não são inteiramente conscientes mas que, pela frequência do uso e pela proximidade com o corpo humano, vão adquirindo uma espécie de memória que não é bem memória e uma espécie de pensamento que não chega a ser pensamento, mas que em certas circunstâncias pode confundir-se com ele, este, dizia, foi construído por um homem que não sabia que estava a construir o vazio, mas apenas a entrelaçar vergas de castanho segundo a técnica que lhe ensinara o pai e que o pai aprendera com um homem de fora, vindo sabe-se lá de onde, talvez do lado de lá do rio ou de mais longe ainda, um desses homens que aparecem nas aldeias como se tivessem vindo do fundo da terra e desaparecem da mesma maneira, deixando atrás de si uma receita de pão, uma superstição e um gesto com as mãos que, quando repetido com a devida paciência, resulta num objecto capaz de conter outras coisas, como legumes, galinhas mortas, mantas dobradas ou mesmo, numa emergência que não chegou a ser relatada mas que aconteceu, um animal recém--nascido embrulhado em panos, não para ser salvo nem para ser escondido, mas porque havia pressa e mais ninguém tinha braços.” (…)
“This one, like all objects that are not entirely conscious, but through frequent use and closeness to the human body begin to acquire a kind of memory that is not quite memory, and a kind of thought that never quite becomes thought, yet which, in certain circumstances, can be mistaken for it, this one, as I was saying, was built by a man who did not know he was building emptiness, but was merely weaving chestnut wood ribbons according to the technique taught by his father and learnt by his father from a man from elsewhere, from who knows where, perhaps from across the river or from even farther, one of those men who appear in villages as if they had come from the depths of the earth and vanish in the same manner, leaving behind a recipe for bread, a superstition, and a gesture of the hands which, when repeated with due patience, results in an object capable of containing other things, like vegetables, dead hens, folded blankets or even, in an emergency that was never recorded but did happen, a newborn creature wrapped in cloth, not to be rescued or to be hidden, but simply because there was haste, and there were no more arms.” (…)
GUARDADOS
Um “guardado” é um objecto que sobreviveu ao tempo com intenção. É um daqueles objectos que decidimos poder vir a fazer parte de nós, do que somos hoje, na antecipação de um futuro em que precisamos de ser recordados da sua importância. Guardamos um “guardado” porque o queremos fixar no tempo, neste tempo… para que não se perca nunca.
Guardado (adjectivo): Protegido ou defendido contra algo ou alguém; Que se conserva para não se deteriorar; Posto de parte; Oculto, escondido.
Guardados (nome masculino plural): Objectos que se guardam em caixas ou outros compartimentos.
Um “guardado” pode ser uma fotografia de um acontecimento mais ou menos especial, mais ou menos banal, uma fotografia nossa ou de outrem. De um agente activo na nossa história ou de um desconhecido, ou de um grupo de desconhecidos, ou de um grupo de desconhecidos à volta de um conhecido. Pode ser aquela tesoura da poda que nunca falhou, aquele colar que nos definia, aquele apontamento de coisa importante ou daquela vez em que nos saíu um verso ou uma estrofe. Pode ser um recorte escurecido de uma revista ou jornal entretanto desaparecidos. Pode ser um equipamento tecnológico de ponta, entretanto obsoleto. Pode ser grande, não tem de ser pequeno (haja espaço para guardar o “guardado”). Pode ser uma escada de azeitona na qual os nossos pais e avós subiram e desceram milhares de vezes. Pode, até, ser um “guardado” de gerações… um que nunca experimentámos e que não experimentaremos porque não queremos correr o risco.
Com estes “guardados” podemos contar uma história… a dele, do seu dono ou dona. Ou outra história qualquer, aquela que nos vier à cabeça quando o vemos, tocamos, cheiramos… quando imaginamos, condicionados, como sempre somos, pelo que sabemos ou ignoramos. Estes são os “guardados” sobre os quais queremos contar histórias.
Filipe Faria
A 'guardado’ is an object that has survived over time as a result of intention. It is one of those objects that we decide can become part of us, of who we are today, in anticipation of a future in which we’ll need reminding of its importance. We keep it because we want to preserve it in time, in this time... so that it will never be lost.
Guardado (adjective): protected or defended against something or someone; that is collected and preserved so as not to become damaged; kept away; hidden, concealed.
Guardados (noun, plural): objects that are stored up in boxes or other containers.
A ‘guardado’ can be a photograph of an event, whether special or banal, a photograph of oneself or of someone else. Of an important figure in our lives or of a stranger, or of a group of strangers, or of a group of strangers with someone we know. It can be that pair of pruning shears that never once failed, that necklace that defined us, that note about something important or that time we came up with a verse or a stanza. It can be a browned clipping from a magazine or newspaper that has long since disappeared. It can be what was once a piece of cutting-edge technology, now obsolete. It can be big; it doesn't have to be small (there's plenty of space to keep the ‘guardado’). It can be an olive-picking ladder that our parents and grandparents climbed up and down thousands of times. It can even be a ‘guardado’ from generations past... one we've never used and won't use because we don't want to take the risk.
With these ‘guardados’ we can tell a story... their story or the story of their owners. Or any other story; the one that comes to mind when we see it, touch it, smell it… when we imagine it, conditioned, as always, by what we know or don't know. These are the ‘guardados’ we want to tell stories about.
[Guardado: treasured, preserved, guarded, protected, kept safe]
Filipe Faria