Museu dos Sons Perdidos 5
 

Ouvir

Antes da luz
Filipe Faria

Nota O ensaio sonoro em quadrifonia, para a instalação sonora imersiva “Antes da luz” foi convertido para a versão stereo que se pode ouvir nesta página. Nesta versão, perde-se a relação quadrifónica de quatro canais independentes (quatro fontes), dispostos on location, de forma a criar um campo sonoro envolvente.

 

Ensaio
Filipe Faria

Notas

Ensaio:
Ninguém aqui dentro. 
Tempo a passar.

Exercício:
Não há voz. A paisagem escrita.

Experiência:
Todas as horas antes da luz.
Paisagem sobre paisagem.

Esboço:
Do lugar vazio. Tarde demais. Ruído.

Hipótese:
Como soa o mundo? Schafer.

Observação: 
Como soa Idanha.

Variação:
Criação a partir do ruído.

Prova: 
Paisagem escrita.
Som sobre fotografia. 
Invisível sobre sais de prata.

Ensaio: 
O lugar não tem corpo nem cara. 
O lugar tem pode ter esta voz.
Tempo a passar. 

E a paisagem, um veículo.


O Museu dos Sons Perdidos

Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas. 
Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre. 
Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar.
Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo.
Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos.
A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais ou colectivas de um lugar ou de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador. 
A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu.
E a imagem, um veículo.


Ninguém aqui dentro
Filipe Faria


Há dias em que o silêncio pesa mais, uma espécie particular de densidade em vez de ausência de som. O ar parece guardar qualquer coisa, e nessas horas suspensas tudo parece ter corpo: o vento, o pó, até o espaço entre os objectos. Há uma espécie de murmúrio nesta densidade que não se ouve senão com muita atenção. Uma espécie de murmúrio que não sabemos de onde vem, uma vibração. É aí que o dia começa — antes da luz.
O som parece que não vem de fora para dentro. Parece de dentro — não é o ouvido que escuta mas o corpo inteiro. Um som mínimo atravessa-me. Quase não reparava. Às vezes penso que não são ecos, mas partidas.
Ando a tentar perceber o que fica depois do som passar. Quando passa, o que fica? Fica uma vibração no ar, quase imperceptível, que demora a desaparecer? Parece que fica, sim, como se o som deixasse um rasto. Uma espécie de linha. Não se vê, não se mede, mas há qualquer coisa que muda na matéria. O ar parece mais espesso, mais usado.
Gosto de pensar que o mundo guarda tudo: cada pedra, cada muro, cada folha, o chão onde caminho e todos os passos, todas as vozes que já não pertencem. Imagino que as árvores sabem de cor o som de todos os ventos de todos os tempos e que o repetem sem saber.
Habito um lugar onde o som viaja devagar, o vento tem direcção, o silêncio tem peso e a noite, um corpo que respira. Os bichos calam-se cedo — ou nunca se calam, depende do dia ou da atenção. Muitas vezes acordo antes do amanhecer, e penso que este é o verdadeiro início do dia: o instante em que tudo está suspenso.
Quando acordo, há uma luz que não é ainda luz, e há um som que não é ainda som. Às vezes acordo depressa e outras devagar. É naquele murmúrio que gosto de estar, porque tudo o que é nítido me distrai, não me interessa. O que me interessa é o que quase se perde, o que vacila, o que respira, o que se esconde. Desfoco os olhos.
Escuto como forma de presença. Quando se escuta verdadeiramente, o tempo muda, as coisas parecem falar — não com palavras, mas com a sua existência. O uivo, o ruído do casaco ao ser pendurado, o lume, são gestos que passam mas que nos dão estrutura. Desfoco os ouvidos.
Gravei muitos sons. Não para os guardar, mas para perceber o que perdem quando deixam de ser. E há uma diferença entre o original e o reproduzido. O primeiro toca o corpo, o segundo apenas a lembrança — ou a imaginação. A gravação é sempre uma tradução imperfeita, uma sonografia de algo que já lá não está, que se moveu. Mas, mesmo assim, gravo... talvez por medo de esquecer, talvez porque gosto daquilo que desaparece.
Fotografei muitos lugares. Não para os guardar, mas porque me aborrece a nitidez.  
Quando volto a ouvir uma gravação antiga — ou a olhar uma imagem —, não é tal e qual como me lembrava. O som envelhece, o objecto também... e eu, que oiço e vejo de outra maneira. As frequências ficam mais próximas, e as partículas elementares — sem massa, sem carga eléctrica —, que transportam energia perdem nitidez. O ar entre as coisas torna-se mais espesso, como se o próprio tempo se tivesse gravado por cima. 
Há lugares onde a escuta é mais fácil: uma sala vazia, uma planície, um campo depois da chuva, são espaços onde o som não precisa de competir, onde o silêncio não é vazio, mas superfície. Às vezes basta fechar os olhos e ouvir a electricidade das coisas, a electricidade das pedras, das plantas, dos corpos. Como se o mundo respirasse por dentro.
O som como memória física, não como metáfora, fica nas coisas. São pequenas diferenças — quase invisíveis — mas quem está atento aprende a reconhecê-las. O mundo fala, sempre falou... raramente o escutamos.
Às vezes penso que vivemos rodeados de sons que já não nos pertencem, das máquinas, das vozes gravadas, das músicas repetidas, sons que não morrem, apenas se acumulam. Há demasiado ruído para que o mundo se oiça a si mesmo, e quando o ruído cessa, o som do mundo volta a ser nítido. E é, quase sempre, mais fácil do que imaginamos.
O ouvido e o olho são ferramentas antigas: servem para medir a distância entre o corpo e o mundo, mas precisam de tempo. O tempo é a verdadeira matéria.
Um dia, talvez consigamos ouvir o que ficou para trás como presença. Imagino que seria insuportável ouvir tudo e, no entanto, há qualquer coisa de terno nessa ideia: de que nada se perde verdadeiramente, de que o mundo continua a falar, mesmo que não esteja ninguém a responder.
Escrevo. Lá fora, o vento sobe, um cão ladra, uma porta fecha-se devagar, o rumor de um motor que se desliga. Depois, o resto. Só a matéria invisível que nos toca, invade, incomoda, questiona, enamora, espanta. 
Tudo faz som — mesmo quando não se ouve (e para isso bastaria que lhe faltasse o ar). Vejo o som como sinal. Quando pára, tudo adormece. Antes da luz pode ter existido um murmúrio. E antes desse, talvez, apenas silêncio — um silêncio espesso.
Ainda há qualquer coisa a acontecer.

Filipe Faria
Monsanto, Outubro 2025

Antes da luz

Ensaio sobre a Paisagem
de Filipe Faria

Paisagem sonora

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Um projecto 
Arte das Musas

Em parceria com 
Município de Idanha-a-Nova 
\UNESCO Creative City of Music

Apoio 
República Portuguesa - Cultura 
\Direção-Geral das Artes

Escrito, gravado e fotografado em
Idanha-a-Nova, 2025

Edição: Arte das Musas
Colecção: Museu dos Sons Perdidos (Vol. 5)
Parceria: O Homem – Colectivo
Design gráfico e paginação: Filipe Faria
1ª Edição: Idanha-a-Nova, 2025
ISBN: 978-989-36322-2-2
Depósito Legal: 555923/25
Tiragem: 250 exemplares

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