Aqui estão as palavras todas
 

OUVIR

Aqui estão as palavras todas que eu te contei
Idalina Gameiro (n.1974), Penha Garcia

 

ENSAIO
Filipe Faria


Ensaio: A paisagem tem a sua própria voz, feita de tentativa, vitória, persistência, engano, desistência. Exercício: A paisagem é memória, feita de tempo, de ausência, de presença. É hoje. Experiência: Este é um diálogo entre a voz desta paisagem, Penha Garcia, e a de Idalina Gameiro, nascida, aqui, em 1974. Esboço: É um ensaio sobre a paisagem. Sobre o poder da paisagem. Prova: Som sobre fotografia. Invisível sobre sais de prata. Ensaio: A voz não tem corpo nem cara.
O corpo (ou a paisagem) tem esta voz. 
Tempo a passar. 
E a paisagem, um veículo.

Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas. 
Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre. 
Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar.
Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo.
Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos.
A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais e colectivas de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador. 
A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu.
E a imagem, um veículo. 


SILÊNCIO NÃO É
Luís Pedro Cabral

Há em cada um de nós tantos silêncios e em cada silêncio tanto de nós.
O silêncio não é um corpo estranho que por aí anda a flutuar, não é um pedaço de irrealidade perdida em labirintos de melancolia, não é dor, mas pode ser, não é corpóreo, nem deixa de ser, não é como se fosse a fantasia anatómica de uma alma ou a memória de um exoesqueleto, não é exactamente uma entidade, mesmo que por vezes pareça. O silêncio nem sequer é silêncio como se julga que o silêncio é. O silêncio não é silêncio. Nem ao silêncio o silêncio pertence, embora de vez em quando se estranhe. O silêncio é do vasto território do diálogo. Silêncio é comunicação, sendo o som uma suas características indeléveis. Não há silêncio. É impossível. Há uma composição absolutamente magnífica de silêncios, que às vezes são disrupção e, noutras, simples harmonia, quando não é o mesmo, ao mesmo tempo. Seja como for, não é silêncio. É outra coisa. Talvez seja um quadro sinóptico, perfeitamente caótico, de coerência senoidal, minimal, repetitiva. Ou talvez seja pura e simplesmente a ausência de si próprio, numa subjectividade psicofísica. Ou, então, é a percepção. Silêncio não é.
Não é fácil observar o território do silêncio, os seus sons, o movimento ondulatório que há em cada detalhe de detalhe, a linguagem que há numa paisagem, como se fosse a natureza que há em nós, quando o que há em nós é apenas a nossa natureza. Até isto tem a sua sonoridade própria, embora nem sempre seja bonita de se ver. É como dar à natureza a faculdade da memória e a esta uma espécie de motricidade humana. É incrivelmente bonito, voltar ao simples, como faz o Filipe Faria neste ensaio sobre a paisagem, preenchendo-a com a sua sonoridade própria, como se resgatasse os sons de todos os silêncios na voz maravilhosa de Idalina Gameiro, que é de Penha Garcia como é da sua gente, do seu território, dos confins do tempo à contemporaneidade. A sua voz é a voz da terra, a voz de todos, a voz do silêncio, a voz da colectividade. A natureza a expressar-se nas suas múltiplas belezas, no seu poder mágico, trágico, de âmago, na sua pureza, na sua rudeza também, perpetuando as frequências irrepetíveis da memória em museologia de som. Vida, portanto.
Nada é tão expressivo quanto a paisagem, o poder de todos os poderes, a sua voz, a sua natureza identitária. O som sobre o olhar, paisagem sobre paisagem, um corpo noutro, num corpo só, um território noutro, num território só, viajando através das suas secretas mutações. É como se na imagem se reconstruísse a sonoridade e nesta se reeenquadrasse a paisagem do olhar, numa inconstante racionalidade, imitando a vida, recriando os seus ciclos, em todas as singularidades da sua estranha sincronia. Tantas, tantas paisagens nesta, nunca diferente, nunca igual. A paisagem é um impulso distópico, um desfile prestímano de memórias, na sua individualidade comunitária. A electromagnética do som numa relação feiticeira com a acústica do olhar. Território em diálogo, na sua inquietude, no seu silêncio.
Há em cada um de nós tantos silêncios e em cada silêncio tanto de nós.


OLHAR
Paulo Longo

Já não podeis ser contentes
Lembranças desesperada
Pois vossas glórias passadas
Morrem de males presentes.
(1)

O derradeiro olhar, fixo num tempo ideal. Para sempre passado, por condição. Cinco séculos permeiam entre as palavras de ontem e as de hoje. Para muitos, o sentido não só permanece, como se afirma nos dias que correm. Em parte, têm razão. Se quisermos continuar a olhar para trás, apenas. A agarrar saudade, sem espaço para crescer noutros sentidos. A contemplar a maravilha cristalina da memória arquivada. Somente.
Aí, as palavras do vilancico farão sentido, ontem como hoje. Perfeitamente alinhadas, sem desafio.
Ecos.
Ecos de um outro tempo ressoam das palavras de Idalina Gameiro. É impossível não o sentir. A voz que canta e que conta não o desmente, nem sequer tenta. Mas não se fica por aí e é precisamente nesse ponto que reside o mais extraordinário das palavras de Idalina. São matéria viva, de criação, magistralmente orquestradas na simplicidade de um discurso que condensa a sabedoria de um mundo que promete renovar-se, pronto a aceitar a mudança como parte do seu ser. Lição aprendida, a transmitir. Não um mero exercício da memória, repetido à exaustão. Idalina aponta caminhos, dialoga, ensina.
O que posso fazer? Tudo, desde que a vontade seja determinada pela convicção, pelo gosto, pelo amor que inegavelmente sente pelo legado que traz consigo: um filho, não um fardo.
E tal como um filho, espera que cresça e dê frutos seus. Legado que é matriz, não prisão. Herança que se quer intuitiva, criativa, dinâmica: condições essenciais de regeneração e de futuro. Sem medo da mudança.
Catarina Chitas entendeu-o bem: não uma mera cantora, mas uma cantautora, que criou poesias e melodias novas. Aqui residia o génio com que nos tocou. Idalina sabe-o bem e não nos deixa esquecê-lo.
Porque a memória não chega.

(1) Vilancico Anón., Cancioneiro de Elvas (c. 1560/70), nº 30 (fol. 68v-69)

Aqui estão as palavras todas
Ensaio sobre a Paisagem
de Filipe Faria

Paisagem sonora sobre paisagem
Idalina Gameiro (n.1974)
Penha Garcia Idanha-a-Nova
Som sobre fotografia

Um projecto de
Filipe Faria

A partir de
Idanha-a-Nova

Paisagem Sonora e Fotografia
Filipe Faria

Edição
Arte das Musas

Colecção
Museu dos Sons Perdidos

Em parceria com
O Homem ONG

Design e Paginação
Filipe Faria

Recolha de textos cantados gentilmente cedida por Idalina Gameiro

Um projecto
Arte das Musas

Em parceria com
Município de Idanha-a-Nova
\UNESCO Creative City of Music

Com o apoio
Ministério da Cultura
\Direção-Geral das Artes

1ª Edição Idanha-a-Nova 2022
Impressão Printer
ISBN 978-989-95983-8-6
Depósito Legal 500810/22
Tiragem 1000 exemplares

© Arte das Musas 2022
Todos os direitos reservados

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